A hora de quebrar patentes

Publicado na Revista Conjuntura Econômica, v. 64-4, p. 56 – 58 em 01/04/2010
Por: Rafael Pinho Senra de Morais

Situação interessante a que vivemos hoje no Brasil. Quando da primeira eleição do presidente Lula, os mercados temiam pelo pior: desfazimento dos contratos de concessão, revisão das privatizações (e até re-nacionalização), controle de remessas de royalties ao exterior, desrespeito a direitos de propriedade intelectual (PI) — e por aí vai. O governo soube lidar com tamanha desconfiança, que foi se esvaindo ao longo dos dois mandatos de Lula.

Agora nos deparamos com um dilema inusitado. Nunca tivemos tanta confiança dos investidores estrangeiros: segundo o IBGE, temos o melhor índice de ambiente econômico na América Latina (dados de janeiro/2010 indicavam índice de 7,8 para o Brasil face à média de 5,6 para a região). Nossos indicadores de crescimento se mostram robustos: fomos apontados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) como o único país em um grupo com os 26 países-membros e seis não membros a não ter entrado em crise; temos pela frente uma Copa do Mundo e uma Olimpíada e todas as obras de infraestrutura aí envolvidas etc.

Ao mesmo tempo, o Brasil se dispõe hoje a restringir e mesmo violar direitos de PI cujos detentores sejam empresas ou pessoas residentes nos Estados Unidos, tema da Medida Provisória 482/10 de 10/02/2010. Isto, segundo analistas, teria um impacto negativo nos investimentos no Brasil em função de uma pior percepção dos investidores sobre a segurança jurídica e a qualidade do ambiente de negócios no país.

Retaliação
A proposta ocorre por conta do descumprimento por parte dos Estados Unidos das decisões impostas pelo Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), em um processo vencido pelo Brasil e que se iniciara em 2002 em função dos subsídios do governo norte-americano aos produtores de algodão (i.e. contencioso WT/DS 267). O Brasil não quer se contentar de retaliar aumentando barreiras alfandegárias sobre produtos norte-americanos, mas quer também atuar sobre a PI deles. Isso afetaria a remuneração pelo trabalho inventivo presente, por exemplo, em programas de computador (softwares), filmes, livros, produtos químicos, remédios.

Trata-se de retaliação cruzada, onde o objeto da represália não está diretamente relacionado à atividade sobre a qual houve lesão por conta da prática delituosa. Caso o Brasil venha a implementar restrições a PI, será uma première da retaliação cruzada para as relações de comércio internacional.¹

O primeiro ponto a enfatizar é a salutar e louvável transparência e proposta de diálogo incitada por nossa Câmara de Comércio Exterior (Camex). A Camex, através da Resolução nº 16 (publicada no D.O.U. em 15/03), instaurou procedimento de consulta pública “sobre as medidas de suspensão de concessões ou obrigações do país relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros”, para que a sociedade civil se manifeste no prazo de 20 dias. Cabe às partes interessadas, assim como a pesquisadores e estudiosos do tema, manifestar-se.

A questão crucial se refere a se devemos ou não retaliar via quebra ou restrições a patentes e, em caso afirmativo, quais patentes deveriam ser objeto desta empreitada. Será que devemos deixar tal escolha à discricionariedade do gestor público, influenciado pelas pressões naturalmente presentes no jogo político, ou pode haver alguma ciência por trás dessas escolhas?

A resposta que pretendo dar aqui é certamente parcial, mas vai à mesma direção do que foi proposto pela Camex quanto à lista de produtos norte-americanos a serem sobretaxados para a importação. A lista exclui, por exemplo, equipamentos e maquinários, pois não interessa ao Brasil aumentar o custo destes insumos para os setores produtivos nacionais. Inclui em grande medida produtos de certo luxo, como lanchas e barcos, automóveis e motos de luxo, itens de perfumaria. Pese a discussão sobre o fato de o trigo figurar na lista, a mesma possui no geral grande apelo social, exibindo preocupação, senão redistributiva, ao menos de não encarecer produtos de consumo das massas pobres.

Concorrência
Meu ponto neste artigo é que podemos usar também este instrumento da retaliação cruzada para fazer política pública, e da boa! Por que dar subsídios para um setor, ou fazer empréstimos não reembolsáveis via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ou outro, se posso quebrar uma patente? Isso sem contar que do ponto de vista microeconômico, subsídios distorcem a concorrência, enquanto a quebra de patentes a incentiva por eliminar uma barreira à entrada geradora de grande poder de mercado (no limite, monopólio).

O Brasil se dispõe a restringir e violar direitos de propriedade intelectual cujos detentores sejam empresas ou pessoas dos EUA

Focarei aqui no acesso a medicamentos, dado ser este o tema principal de minha pesquisa. O argumento é simples: alguém decidiu que é desejável investir em remédios.² Ótimo, então façamo-lo da forma menos custosa para o bem-estar social. Certamente é menos custoso usar desta oportunidade concedida pela retaliação cruzada do que promover política industrial onerosa aos cofres públicos e que distorce a concorrência onde ela é possível.

Outra questão, por sinal muito controversa, é o timing da necessária eliminação da retaliação cruzada, que é transitória. Será que a partir do momento que os Estados Unidos retirem os subsídios do algodão teríamos que restabelecer as condições de PI prévias à retaliação? O próprio entendimento da OMC parece controverso quanto à retaliação ter mero caráter dissuasivo, ou também compensatório/indenizatório pelo dano causado.³ Entretanto, ainda que seja o caso de retirada imediata da sanção em caso de cumprimento da decisão, e portanto de não haver tempo hábil para a produção local do medicamento objeto de licenciamento compulsório, já vale a pena quebrar a patente para importar barato.

O objeto da retaliação cruzada não está diretamente relacionado à atividade onde houve lesão por conta da prática delituosa

A questão que resta é que patentes de remédios suspender. A primeira parte da resposta está ligada à disponibilidade no mercado internacional de genéricos que possamos importar legalmente e que tenham qualidade comprovada. A segunda refere-se a não desestimular a pesquisa farmacêutica em doenças para as quais o mercado relevante é o de países pobres.

Tenho arguido em meus trabalhos acadêmicos pela necessidade de maiores incentivos para a pesquisa e desenvolvimento (P&D) em remédios para doenças negligenciadas (malária, Chagas, leishmaniose, dengue, cólera etc.). Em particular, que os países em desenvolvimento deveriam comprometer-se na esfera internacional a não usar de licenciamento compulsório para patentes nestas áreas. Logo, se viermos a retaliar em PI, devemos focar em remédios úteis contra doenças que afetem tanto países pobres e ricos, remédios para os quais os mercados de países pobres sejam pouco importantes. Há casos inclusive em que a quebra de patentes por estes países é Pareto-eficiente, pois trazem um impacto negativo pequeno sobre os incentivos à inovação, enquanto favorecem o acesso de milhões de pacientes pobres a remédios caros.

Se formos cuidadosos, temos muito a ganhar caso usemos da retaliação em PI de remédios. Mas devemos deixar claro para o mundo que doenças negligenciadas continuam objeto de enforcement estrito de PI no Brasil. E que não vamos importar remédios produzidos violando PI em outro país, ou de qualidade duvidosa. Com um pouco de ciência, é possível conciliar retaliação respeitosa das regras internacionais, com maior acesso a medicamentos bons e baratos e manutenção dos incentivos a P&D em doenças negligenciadas.


1 A OMC em duas outras ocasiões permitiu a utilização de retaliação cruzada, mas, em ambas, as partes envolvidas chegaram a um acordo e tal procedimento retaliatório não foi adotado.

2 Os produtos farmacêuticos foram incluídos na lista dos quatro setores estratégicos na política de desenvolvimento industrial do governo Lula (vide PITCE de 2003, e PDP de 2008).

3 Vide o site da entidade: http://www.wto.org/english/res_e/booksp_e/analytic_index_e/dsu_08_e.htm#article22B

 

Texto publicado originalmente em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rce/article/view/23372/2254

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