Reequilíbrio e o pós-pandemia

Publicado no JOTA em 24/08/2020
Por: Rafael Pinho de Morais

Supondo que o reequilíbrio em concessões e PPPs faça sentido, analisamos suas consequências práticas.

 

Tive a oportunidade de publicar recentemente dois artigos[1] criticando veemente a posição adotada pela Advocacia-Geral da União (AGU) e Controladoria-Geral da União (CGU) no Parecer 261, de 09/04/2020. No documento, os órgãos – incumbidos funcionalmente da defesa dos interesses da União e do monitoramento dos atos de agentes públicos federais – opinam contundentemente pela necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos públicos em virtude da pandemia (artigo 65, II, d, da Lei 8.666 / 93). Ao caracterizá-la como álea extraordinária, responsabilizam o poder concedente pelos efeitos da crise sanitária (salvo disposição expressa em contrário no contrato, o que em geral não existe). Ainda que a princípio não vinculante para a administração pública e restrito a infraestruturas de transportes, a tendência é se aplicar o Parecer 261 amplamente, em particular a concessões e PPPs em geral.

Isso significa na prática que caberia ao governo pagar a conta dos prejuízos incorridos por aeroportos, rodovias, transportes públicos (ônibus, trens, metrôs), geradoras, transmissoras e distribuidoras de energia, entre tantas outras empresas que proveem serviços públicos e foram afetadas brutalmente pela pandemia e pelas medidas tomadas para contê-la (como decretos de isolamento social e lockdowns).

Nos artigos anteriores critiquei diversos pontos do Parecer. Neste faremos diferente: vamos supor que a AGU e CGU têm razão. Só para fins de argumentação, claro. É o famoso ad argumentandum do Direito. Terá então o poder concedente de qualquer esfera que despender milhões para indenizar os conglomerados que exploram serviços públicos. Ou então permitir o aumento das tarifas, ou alongar os contratos vigentes com redução dos investimentos previstos. No Rio de Janeiro, por exemplo, a União compensaria a concessionária do aeroporto do Galeão com base no fluxo histórico de passageiros para os meses da pandemia, o estado faria o mesmo com relação às rodovias estaduais e a prefeitura idem para a Linha Amarela – para nos atermos a exemplos em infraestrutura de transportes, foco original do Parecer 261.

Temos então as três esferas de governo, cujas contas já não fechavam antes da pandemia e cujos gastos foram com ela catapultados, destinando milhões para grandes empresas que mal ou bem sobreviveram à pandemia. Enquanto isso, teremos no pós-pandemia a continuação da quebradeira dos pequenos negócios que sequer acesso a crédito em tempo hábil conseguiram, sem falar obviamente as perdas humanas, que já passam de chocantes cem mil (em dados oficiais). Suponhamos que isso seja moralmente aceitável e juridicamente sólido (ad argumentandum!).

A primeira pergunta é: como calcular esse reequilíbrio? Toda a conta da queda de demanda virá para o colo da população? (Seja diretamente via aumento de tarifas e redução de investimentos, seja via erário, com recursos dos cofres públicos ou redução de direitos de outorga a serem recebidos pelo governo.) Na ponta do lápis – ad argumentandum! – ter-se-ia que distinguir os efeitos dos decretos de isolamento daquele oriundo da precaução natural da população. Em tese, a queda de demanda por conta de mudança nas preferências ou escolhas da população – que não quer pegar avião ou a estrada na pandemia – seria alea ordinária e portanto ônus da concessionária, enquanto a parte da queda fruto do vírus em si (incerteza) e dos decretos governamentais (supostos fatos do príncipe) ficaria a cargo do poder concedente. Não será exercício econométrico fácil, mas seria certamente necessário para este cálculo. A menos que se opte, claro, por considerar tudo como alea extraordinária e a população deva arcar integralmente.

Há de se ressaltar ainda que a pandemia vai durar um ou dois anos, enquanto os contratos de concessão duram no mínimo vinte anos. Isso nos conduz â segunda pergunta: haverá outro reequilíbrio no pós-pandemia? Sim, porque assim que for disponibilizada a primeira vacina, haverá um novo surto: o de viagens. Ou ninguém pensou nisso? Famílias inteiras confinadas por meses, ninguém viajando ou tirando férias em 2020, as crianças full-time em casa e a maioria dos adultos em home-office trabalhando mais horas para o empregador que antes – a ponto de muitas empresas optarem por não desfazer o home-office no pós-pandemia. O que será das rodovias e aeroportos assim que for disponibilizada a primeira vacina? Não vão dar conta. E o que a AGU e CGU vão fazer? Vamos reequilibrar outra vez no pós-pandemia, só que dessa vez pró-sociedade, considerando esse pico de demanda como alea extraordinária? Ou esse choque positivo de demanda será aí considerado alea ordinária? E isso mesmo se seus efeitos perdurarem por conta de mudança permanente de preferências? Afinal, é natural que a pandemia traga questões existenciais e muitas pessoas resolvam a partir de agora viajar mais, e para o resto de suas vidas.

As perguntas dos dois parágrafos anteriores precisam ser respondidas antes de se adotar uma postura a favor do reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, como a preconizada pelo Parecer 261. Referem-se basicamente ao como fazer e ao que fazer logo depois (ad argumentandum!) – questões básicas para qualquer política pública ou qualquer postura jurídica que se adote.

Não custa ressaltar, por fim, que a enorme demanda reprimida por lazer e turismo que explodirá logo após a pandemia também evidenciará ainda mais nossas desigualdades sociais. Claro que só abarcará as classes mais abastadas. As outras, que não tiveram direito à quarentena, ficaram pegando o vírus nas filas da Caixa Econômica Federal e no transporte público nos últimos meses – e continuarão não frequentando aeroportos. Mas correm o risco de não só seguir pagando por eles, como ainda arcar com suas quedas de demanda na pandemia. A menos, claro, que se mude radicalmente o entendimento dado até agora aos impactos da pandemia sobre empresas concessionárias e PPPs.

[1] Trata-se de:

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reequilibrio-de-concessoes-por-pandemia-aberracao-juridica-09072020 e https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/07/13/concessoes-e-indenizacoes.ghtml

Os artigos estão disponíveis na íntegra em http://www.rafaelpinhodemorais.com.br/opiniao/

 

 

Link para a matéria: www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reequilibrio-e-o-pos-pandemia-24082020

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