Publicado no Valor Econômico em 27/06/2011
Por: Rafael Pinho de Morais
Este breve artigo visa apresentar – e, certamente, questionar – o entendimento manifestado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) quanto ao tratamento a ser dispensado aos acordos de licenciamento de direitos de propriedade intelectual no Brasil. A situação de incerteza hoje presente implica, sem dúvida, grande insegurança jurídica e requer uma solução. O caminho que está sendo trilhado pelo CADE, todavia, parece inadequado e perigoso.
A interface entre os direitos de propriedade intelectual e a defesa da concorrência é tema que vem se desenvolvendo a passos largos. Casos internacionais envolvendo propriedade intelectual incluem recusas de contratar (Microsoft, Intel, IBM e IMS Health), venda casada (Xerox e Kodak), práticas sui generis como as das farmacêuticas Astra Zeneca (Comissão Europeia) e Reckitt (Inglaterra), ou ainda a litigância predatória ou sham.
Seguindo essa tendência mundial, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) tem lidado com um número crescente de casos envolvendo o uso potencialmente anticompetitivo de direitos de propriedade intelectual, assim como com atos de concentração em que a propriedade intelectual exerce papel primordial – limitando, por vezes, inclusive, a definição de mercado relevante. Vale ressaltar que quando falamos de propriedade intelectual não se trata exclusivamente de patentes, mas também outros como direitos autorais (sobre os quais se sustenta a proteção a softwares no Brasil) e cultivares (que visa proteger novas variedades vegetais, obtidas a partir de pesquisa e desenvolvimento em biotecnologia).
O estudo desta interface entre propriedade intelectual e concorrência atraiu a atenção de órgãos como o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), e do órgão ao qual o IPEA hoje está vinculado, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR).
Por precaução, empresas acabam notificando os contratos ao SBDC
Um dos temas mais instigantes nessa interface é o dos acordos de licenciamento de tecnologia. Se, por um lado, eles têm, via de regra, caráter pró-competitivo, existem diversas preocupações de cunho antitruste. Sob a ótica microeconômica, o licenciamento (inclusive o licenciamento cruzado e outras variedades) permite a combinação de fatores de produção complementares entre empresas, aumentando a eficiência econômica na produção dos bens que incorporam estes direitos de propriedade intelectual. Este efeito se traduz em mais produtos e produtos mais baratos para os consumidores finais, ou seja, o licenciamento é inerentemente pró-competitivo.
O guia de análise americano de 1995 sobre estes acordos é documento de grande valia na questão, e mostra como algumas das cláusulas embutidas nos acordos devem ser proibidas per se, enquanto outras requerem uma análise antitruste pela regra da razão. Os EUA foram seguidos por diversos países na edição de guidelines no tema.
No Brasil, não temos ainda um guia de análise, e a prática corrente tem sido bastante simplista, requerendo-se a retirada de cláusulas de exclusividade e não-concorrência quando elas estão presentes nos contratos de licenciamento. Sem falar que a exclusividade não deve receber tratamento per se (e sem falar que ela pode ocorrer de fato ainda que o contrato de licenciamento diga o contrário), outras cláusulas e efeitos dos acordos são muitas vezes negligenciados por este foco restrito. Como se não bastasse, o SBDC vem apontando na perigosa direção de deixar de exigir notificação destes acordos.
É certo que a situação atual de incerteza sobre o dever ou não de se notificar acordos de licenciamento de tecnologia não é desejável. Face à generalidade do caput do artigo 54 da Lei nº 8884, de 1994, ao referir-se ao dever de submissão à apreciação pelo Cade de “atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência”, via de regra as empresas, por precaução, acabam notificando ao SBDC os contratos de licenciamento de propriedade intelectual. No entanto, a solução que atualmente se vislumbra no Cade é inadequada.
Existe hoje no Cade uma tendência pelo não conhecimento desse tipo de operação, que apareceu pela primeira vez na discussão do AC 08012.000344/2010-71, envolvendo as empresas Monsanto e FTS Sementes. Contrariamente ao semelhante acordo envolvendo as mesmas duas empresas (e outra tecnologia) em 2006 e que foi aprovado sem restrições (AC 08012.000766/2006-61), esse acabou, por unanimidade, arquivado sem julgamento do mérito face ao não conhecimento da operação, em 3 de março de 2010. No AC 08012.005472/2010-10 envolvendo “licenciamento de direitos de propriedade industrial e transferência de informações e técnicas e know-how” entre Bayer e Dow Agrosgrosciences, o não conhecimento voltou à tona no voto do conselheiro relator, e foi ratificado em voto-vista do presidente. O Plenário, por unanimidade, não conheceu da operação em 20 de outubro de 2010.
Uma harmonização pelo não conhecimento implica em desobrigar as empresas a notificar este tipo de acordo ao SBDC. No mundo ideal, todos estes acordos deveriam ser notificados ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) – obrigação esta que só existe na prática (e por razões meramente fiscais) quando envolve transferência internacional de tecnologia e remessa de royalties. E caberia então ao INPI e SBDC trabalharem conjuntamente no monitoramento de eventuais indícios de abusos concorrenciais – acordo de cooperação técnica entre os órgãos já existe.
Enquanto não alcançamos este arranjo institucional ideal, desobrigar a notificação implica em a sociedade perder o acesso a informações importantes sobre a ocorrência desses acordos, suas cláusulas e características, e o entrelaçamento das atividades de empresas concorrentes potenciais em setores onde propriedade intelectual e transferência de tecnologia são a regra. Estaremos, assim, tolhendo o escrutínio antitruste nestes setores de crescente importância para a economia brasileira.