Pesadelo para o consumidor

Publicado no Jornal O Globo em 01/08/2011
Por: Lúcia Helena Salgado e Rafael Pinho Senra de Morais

A aquisição da Sadia pela Perdigão agora deixará as manchetes – e se tornará um pesadelo para os consumidores. A operação foi aprovada com restrições pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Não bastasse ser uma decisão no mínimo embaraçosa para o órgão – um flagrante retrocesso institucional – a aprovação da operação afronta a lei.

A Sadia-Perdigão foi a julgamento (8/6), tendo o conselheiro relator Carlos Ragazzo proferido seu voto contrário à fusão. O conselheiro Ricardo Ruiz pediu então vista do caso, o que suspendeu o julgamento. Daí teve início um frenético (12 reuniões) e extemporâneo processo de negociação, comandado pelo conselheiro Ruiz. Extemporâneo porque, em qualquer jurisdição madura, o redesenho de uma operação para adequá-la à legalidade dá-se antes do início do julgamento.

Em 13/7, a fusão foi aprovada sujeita ao cumprimento de um Termo de Compromisso de Desempenho. Poderíamos questionar o mérito da decisão tomada, o grau de aprofundamento dos demais conselheiros votantes nas questões relevantes ao caso, a motivação para uma tal reviravolta – mas preferimos ater-nos ao incontestável: a ilegalidade da decisão. O regimento interno do Cade (art. 131 caput e §3º) é claro ao prever que – caso conveniente e oportuno – cabe ao relator negociar o teor do termo com os interessados e ao plenário do Cade decidir se o aceita ou não. Em Sadia-Perdigão, o relator não conduziu nem sequer concordou que os compromissos assumidos seriam suficientes para mitigar os efeitos anticompetitivos apontados em seu voto – este, sim, elaborado em tempo suficiente de análise.

Não se trata de preciosismo jurídico – mas, sim, de exigir o cumprimento da salvaguarda embutida no trâmite legal devidamente refletido pelo legislador (no caso o próprio plenário do Cade em momentos mais gloriosos). Quanto à fundamentação técnica, o conselheiro Ruiz restringiu-se a resumir o relatório e a tornar a elogiar o voto do relator – deixando de rebater as razões que levaram aquele a desaprovar a operação -, passando à leitura do Termo de Compromisso de Desempenho negociado com as empresas, no que foi seguido pelos demais conselheiros, à exceção do único que apresentou voto fundamentado: o relator.

Lembremo-nos que decisões administrativas, sem exceção, precisam ser fundamentadas. Esta, rigorosamente, não o foi. Tampouco o TCD votado segue os procedimentos para a adoção de remédios dessa natureza. Atropelou-se o regimento interno do órgão e, por tabela, a lei, pois “compete ao plenário do Cade: I – zelar pela observância desta lei e seu regulamento e do regimento interno do Conselho” (Lei 8884/94 art. 7º, I).

Tal afronta põe em risco o próprio desenho de governança da instituição, garantia do interesse público por ela tutelado. São os procedimentos seguidos pelo Cade a forma objetiva de sua autonomia, transparência, prestação de contas e isenção técnica. Vimos essas salvaguardas serem feitas letra morta, tudo no afã de se buscar a qualquer custo uma saída para viabilizar a fusão. Na sessão do Cade que aprovou a fusão Sadia-Perdigão, decidiu-se sobre algo indisponível: o interesse público da concorrência. Com a palavra os que ainda crêem em sua defesa.

Publicado originalmente em: https://oglobo.globo.com/opiniao/pesadelo-para-consumidor-2871268#ixzz4zvP1YdTj

Comente aqui:

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *