Publicado no JOTA em 09/07/2020
Por: Rafael Pinho de Morais
O entendimento da pandemia como álea extraordinária precisa ser combatido. Para o bem do país.
A presente pandemia do coronavírus reavivou as controvérsias relativas à alocação de riscos e o consequente reequilíbrio econômico-financeiro nos arranjos público-privados (APPs), que incluem concessões e parcerias público-privadas.
O Parecer 261 – assinado conjuntamente pela Advocacia-Geral da União (AGU) e Controladoria-Geral da União (CGU) – pareceu pacificar a questão, ao caracterizar a pandemia como álea extraordinária, responsabilizando, assim, o poder concedente por seus efeitos (salvo disposição expressa em contrário no contrato).
O que se viu na sequência foi uma sucessão de artigos que – salvo melhor juízo – unanimemente elogiam o parecer. Este breve artigo é uma voz dissonante e contundente, apresentando o Parecer 261 como uma aberração jurídica de consequências catastróficas (e bilionárias) para o Brasil.
Com as crises econômicas de 2008/2009 e 2016/2017, diversas empresas buscaram – e obtiveram – o reequilíbrio econômico-financeiro de seus contratos de APP alegando que, apesar de o risco de demanda ser um risco ordinário, a crise havia sido causada grosso modo pelo poder concedente e a empresa não tinha como se precaver, caracterizando álea extraordinária.
Assim, um instrumento focado num contrato específico (artigo 65, II, da Lei 8.666 / 93), o reequilíbrio passou a ser aplicado a algo com efeitos amplos sobre diversos contratos: a crise econômica.
Agora, com a pandemia, esticou-se ainda mais o argumento. O Parecer 261 atribui ao poder concedente o ônus dos impactos da pandemia e das medidas dos entes públicos no esforço para contê-la.
Ainda que a princípio não vinculante para a administração pública e restrito a infraestruturas de transportes, a tendência até agora parece ser aplicá-lo amplamente.
Primeiramente, cabe pontuar que não se trata de alocação de riscos (áleas), mas sim incerteza. Risco é de alguma forma previsível e em geral pode ser objeto de seguro, e a principal função de qualquer contrato é justamente alocar risco entre as partes.
Já a incerteza é algo totalmente imprevisível, e a que ninguém deu causa ou contribuiu de nenhuma forma, ou deixou de se precaver. Terremotos, tsunamis e pandemias são incerteza, enquanto guerra e decisões discricionárias do poder público (como rever contrato, desapropriar, construir uma rodovia ou um aeroporto que concorra com o já concedido) são riscos.
Ademais, o fundamento jurídico para o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro da concessão ou PPP está na coletivização do dano: a sociedade pagaria a uma concessão em particular por um dano sofrido por ela especificamente. Isso se justifica em particular face à essencialidade do serviço público prestado e sua inerente exigência de continuidade da prestação.
Ocorre que na pandemia todos estamos sendo afetados, grandes empresas menos que as pequenas, e estas menos que a maioria das pessoas físicas. Os dados sobre as mais de 60 mil pessoas mortas oficialmente, sobre o crescimento do desemprego e fechamento definitivo de micro e pequenas empresas falam por si só.
Parece que veio um terremoto no país todo, e o governo vai pagar a reconstrução das rodovias e aeroportos concedidos – mas não tem praticamente mais país. Qual o sentido de coletivizar o ônus sobre os APPs quando toda a população está sendo afetada, em especial os mais pobres?
É inegável a necessidade de segurança jurídica para que empresas se interessem por APPs, mas o Estado ser garantidor para todo risco – e incerteza – que se possa abater sobre um serviço concedido não faz sentido em termos de eficiência econômica.
Os lances nos leilões dos APPs tampouco refletiram essa segurança total e irrestrita – porque ela não pode existir. O compartilhamento dos riscos é eficiente do ponto de vista econômico, gera incentivos para o concessionário performar.
Em segundo lugar, é imponderável caracterizar os atos da administração pública decorrentes da pandemia (como decretos de isolamento social, quarentenas e lockdowns) como fatos do príncipe. O poder público não tomou qualquer medida imbuído de algum grau de discricionariedade.
As medidas foram listadas como necessárias pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para o combate à Covid-19 e respaldadas por comitês técnico-científicos locais – o que não somente as justificavam como as exigiam. Vale pontuar ainda que tais medidas são impopulares, que nenhum político gostaria de tê-las tomado.
Como pode então o poder concedente ser responsabilizado por uma queda de demanda de uma concessionária – ou melhor, de quase todas as concessionárias – por ter agido da maneira (impopular) que deveria agir no meio de uma pandemia mundial com graves impactos locais? E ter agido para salvar vidas, sob pena de ser responsabilizado – inclusive criminalmente – caso não o fizesse? Isso sem falar que grande parte do impacto sobre concessionárias não adveio de atos do governo, mas da precaução da própria população.
Com ou sem decretos, tem um vírus mortal lá fora. Além disso, as demandas da grande maioria de bens e serviços retraíram, não somente a dos serviços públicos. Os decretos não fecharam rodovias nem aeroportos, por exemplo, ao contrário de salões de beleza e comércio não essencial. E esses últimos não serão indenizados.
Por fim, num país onde até assassino confesso filmado claramente no ato tem advogado para dizer que “não foi bem assim”, é no mínimo surreal ver a AGU defendendo enfaticamente os interesses do parceiro privado nos APPs, e sendo acompanhada pelo órgão que controla a lisura dos atos de funcionários públicos (CGU). Não surpreende o Parecer 261 ter sido tão aclamado em diversos artigos de advogados de concessionárias e afins.
Ressalte-se ainda o custo bilionário para o erário, a se manter o entendimento do parecer. O impacto é, no mínimo, incompatível com um parecer assinado por um único advogado-geral da União.
Outra ressalva importante é que “dinheiro público” é ficção: jogar essa conta para o poder concedente reverterá em maior carga tributária no futuro, o que comprometerá o desenvolvimento econômico.
Ou, ainda pior, reverterá no reequilíbrio em pedágios rodoviários, tarifas aeroportuárias, passagens (do transporte público) etc. mais caros para a população.
É possível e salutar postergar pagamentos de outorga, facilitar e baratear o acesso a crédito – até porque são negócios com baixíssimo risco (para quem lhes emprestar recursos agora) pois exploram serviços essenciais cuja demanda já já se restabelece e cujos prazos de exploração se medem em décadas.
Isso é muito distinto de reequilíbrio com o Estado como garantidor dos prejuízos transitórios da pandemia. É inadmissível, nas circunstâncias atuais, pensar em permitir redução de investimentos, ou redução de pagamentos de direitos de outorga ao governo, ou ainda a extensão do prazo das concessões, ou pior, o aumento das tarifas. Quem não faltou à aula de Análise Econômica do Direito, ou de Teoria Consequencialista do Direito, sabe disso.
Num momento em que tantas empresas privadas se mobilizam para doar e preencher assim seu papel social, por que deveria o dinheiro público (i.e. da sociedade) ser usado para compensar queda transitória de receita de APPs?
Isso sem falar que em algum momento, governos que já estavam quebrados precisarão retomar trajetórias de austeridade fiscal em meio a uma estagnação econômica que durará muito mais que a pandemia e seus choques imediatos de demanda.
Assinado por um único advogado da União e totalmente contrário aos interesses do país, o Parecer 261 precisa urgentemente ser submergido por outros pareceres em contrário, ou decisão do Supremo, ou projeto de lei ou, se necessário, emenda constitucional.
O mecanismo jurídico para tornar ineficaz tal aberração pouco importa, mas não podemos observar atônitos à destruição das finanças das diferentes esferas de governo de maneira totalmente regressiva – prejudicando os mais pobres. Como se já não bastasse a pandemia a escancarar nossas desigualdades.
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