Publicado no Valor Econômico em 07/12/10
Por: Rafael Pinho de Morais
Este breve artigo apresenta resumidamente argumentação de artigo acadêmico que questiona os critérios para a condenação de empresas praticantes de litigância anticompetitiva (ou predatória), a chamada “sham litigation”. Questiona, em particular, entendimentos manifestados pelas instâncias do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) no caso recém-julgado que avaliou práticas da empresa Siemens VDO, dominante no mercado nacional de tacógrafos, face a denúncias de sua concorrente Seva (PA 08012.004484/2005-51).
A litigância anticompetitiva é tema muito sensível. Envolve o Poder Judiciário em dois momentos: na revisão judicial (ex post) dos atos administrativos – já bastante polêmica na esfera antitruste – e porque a conduta em si objeto de apreciação pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – e potencialmente pelo Judiciário ex post – envolve o abuso no exercício do direito de requisitar a apreciação pelo Poder Judiciário (e/ou por órgão administrativo): o chamado direito de petição. Parâmetros objetivos, baseados na literatura pertinente, são essenciais para fundamentar condenações pelo Cade, e diminuir as chances de reversão da decisão na esfera judicial.
O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (CF art. 5º, XXXIV e XXXV) não é absoluto. O limite ao direito de petição é o seu abuso: a litigância de má-fé (CPC arts. 16 a 18). Para ser punível no âmbito antitruste, essa litigância deve ter impacto anticompetitivo. Abarca, portanto, o processo administrativo ou judicial (ou conjunto de processos) fraudulento ou sem fundamento (baseless) cuja rationale vai além do processo em si, objetivando impactar negativamente a capacidade de competir da empresa que figura no polo passivo da ação.
O SBDC tem crescente interesse em litigância anticompetitiva, havendo hoje na Secretaria de Direito Econômico (SDE) cinco investigações na indústria farmacêutica. O caso dos tacógrafos foi a primeira vez que o SBDC se debruçou sobre o tema, apesar de a condenação restringir-se ao convite à cartelização.
O parecer da SDE seguiu a prática norte-americana, exigindo dois elementos para a caracterização da conduta: “a ação proposta é, por completo, carecedora de embasamento, sendo certo que nenhum litigante razoável poderia, de forma realista, esperar que sua pretensão fosse deferida”; e “a ação proposta mascara um instrumento anticompetitivo”.
O grande mérito desta definição está em não exigir intento subjetivo do autor para fins de caracterização da conduta – o que comumente ocorre nos EUA, pois foi a fórmula usada no famoso caso PRE, de onde veio a definição em duas etapas. A principal crítica ao parecer da SDE, no entanto, refere-se ao primeiro requisito.
O critério da probabilidade nula de vitória “ex ante” – que se extrai da ideia de que nenhum litigante razoável poderia, de forma realista, esperar que sua pretensão fosse deferida” – é exageradamente restritivo. Ficam à margem do escrutínio antitruste práticas claramente predatórias que envolvem alguma probabilidade de ganho.
Atentar para o valor esperado da litigância em si resolveria o problema. Não se exigiria probabilidade nula de vitória num processo individual, importando somente a combinação das probabilidades e ganhos eventuais – algo intrínseco à própria definição de valor esperado. Bastaria exigir que o valor esperado no processo ou conjunto de processos fosse negativo para caracterizar-se sham – a rationale da conduta para o autor (leia-se: o que tornaria este valor esperado positivo) estaria exatamente em afetar a capacidade de concorrer de seu competidor.
As consequências no âmbito antitruste da exigência de probabilidade nula são imensas, e vão além do óbvio estímulo a uma prática ilegal que a lei não coíbe. A presença de uma mínima incerteza regulatória potencialmente já bastaria para eximir qualquer empresa de culpabilidade antitruste por abuso do direito de petição. Num país de polêmicas e indefinições regulatórias – como patentes pipelines e anuência prévia para patentes farmacêuticas – torna-se quase impossível provar que uma empresa tenha certeza de perder uma ação.
O problema, todavia, não acaba aí. Requerer probabilidade nula estimula a empresa a ingressar com mais e mais processos sham, pois uma única eventual vitória no mérito em pedido judicial/administrativo já descaracterizaria a litigância espúria. Esta ocorrência eventual de vitórias apareceu perigosamente em alguns votos no caso de tacógrafos como evidência contrária à condenação por sham, contrariando doutrina americana que busca distinguir baseless ex ante do resultado efetivo das ações.
A manter-se o entendimento que se extrai do caso de tacógrafos, estaremos gerando incentivos para que a litigância anticompetitiva ocorra mais na sociedade e, no caso individual, para que uma empresa impetre mais e mais demandas sham em virtude de a dificuldade de provar o delito ser uma função crescente do número de pedidos judiciais e/ou administrativos. É preciso reformular e deixar claro o entendimento do SBDC sobre o tema, e atentar para não gerar precedente indesejável.