Publicado no JOTA em 09/08/2020
Por: Rafael Pinho de Morais
A universalização da banda larga é urgente. E há recursos para isso.
O ano de 2020 ficará marcado para sempre, mas não somente pela pandemia do novo coronavírus. Para além da óbvia crise sanitária e de Saúde que enfrentamos, veio também a crise da Educação. E essa pode se prolongar mais que a da Saúde. Não se trata do mérito de nomes específicos no comando do Ministério – ou da falta de um, como em junho/julho – ou das tendências ideológicas e total falta de diretrizes e políticas públicas focadas, já anteriores à pandemia e que com ela se acentuaram. O foco aqui é o que a pandemia trouxe de novidade: escancarou e, pior. agravou a já enorme distância de acesso à educação entre classes sociais.
Da mesma forma que trabalhadores de classes sociais distintas tiveram relação distinta com o isolamento social, estudantes também estão enfrentando a pandemia em condições bem díspares. A diferença entre eles e trabalhadores é que na Educação não precisava ser assim. O principal instrumento que poderia promover um acesso igualitário à necessária educação à distância em tempos de pandemia existe há vinte anos – isso mesmo, desde 2000 – mas nunca foi usado adequadamente. E continua não sendo.
Com a pandemia, as classes média e alta passaram em grande parte a trabalhar em casa (home office). Já os mais pobres (e com emprego), em boa parte continuaram trabalhando. São prestadores de serviços de baixo valor agregado, mas essenciais, como motoristas (de caminhão, de ônibus, trens etc.), porteiros, faxineiros, encanadores, mecânicos, caixas de supermercado etc. Esses serviços não podem ser realizados à distância e essas pessoas não tiveram direito à quarentena. Grande exposição ao vírus também ocorreu por parte dos trabalhadores informais. Muitos dependem do que ganham cada dia e precisaram continuar trabalhando. As absurdas filas – em plena pandemia – na porta de agências da Caixa evidenciaram ainda mais as desigualdades sociais do país.
Mas e os estudantes? Os estudantes de todas as idades e classes sociais se viram obrigados a fazer quarentena, já que aulas foram suspensas no país inteiro. Escolas particulares passaram a oferecer aulas online e os pais de classe média rapidamente compraram um laptop ou um tablet a mais – isso quando já não tinham equipamentos sobrando em casa. Mas e os colégios públicos? E a classe baixa?
Segundo dados do INEP, quase um quarto dos inscritos no ENEM 2019 não tinham acesso a internet. Isso mesmo, mais de 1 milhão dos pouco mais de 5 milhões de inscritos. Essa falta de acesso à internet, que já era grave e proliferadora da desigualdade, tornou-se mais grave com a pandemia. Além disso, mais de 2 milhões dos inscritos declarou não ter computador em casa (46%) e outros mais de 2 milhões declarou ter apenas um computador em casa (outros 43%). Ou seja, apenas 10% dos inscritos no ENEM 2019 possuíam mais de um computador em casa – algo essencial para que um jovem que está concluindo o ensino médio em 2020 ou o concluiu recentemente possa durante a quarentena se dedicar aos estudos. Sem falar que 2% declarou não possuir sequer telefone celular – e não há números para os que possuíam e não eram smartphones.
Como se não bastassem outras dificuldades mais acentuadas para os estudantes mais pobres – como aumento na necessidade de trabalhar para ajudar a família num momento de crise, falta de espaço em casa (e silêncio) para se isolar para estudar e a questão emocional – eles ainda têm que lidar com a exclusão digital. E não são apenas os candidatos ao ENEM, obviamente. Segundo a pesquisa TIC Educação 2019 [1] – que cobriu mais de 1000 escolas urbanas e mais de 1400 escolas rurais – 39% dos alunos de escolas públicas urbanas não possuíam nenhum computador ou tablete em seu domicílio. Esse número era 9% para os alunos de escolas particulares urbanas. Outro indicador aponta que enquanto apenas 3% dos alunos de escolas urbanas privadas acessam a internet apenas pelo celular, esse é o caso para 21% dos alunos de escola pública urbana. A pesquisa não traz esse detalhamento para as escolas rurais, mas a disparidade digital entre o ensino público e o privado deve ser ainda maior no meio rural.
O mais impressionante é que realmente não precisava ser assim. A lei 9998 de agosto de 2000 instituiu o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), “tendo por finalidade proporcionar recursos destinados a cobrir a parcela de custo exclusivamente atribuível ao cumprimento das obrigações de universalização de serviços de telecomunicações, que não possa ser recuperada com a exploração eficiente do serviço”. Ou seja, cabe ao governo federal através do FUST financiar a inclusão em telecomunicações. E isso ocorre subsidiariamente, isto é, no que não for comercialmente interessante para as prestadoras de serviços de telecomunicações. A lei incube ao Ministério das Comunicações definir as políticas de universalização e destinar os recursos e à Anatel – que é a autarquia federal que funciona como agência reguladora setorial – fiscalizar.
Desde sua criação, o FUST já arrecadou mais de 22 bilhões de reais[2]. Só em 2020 já foram mais de 400 milhões de reais. Sua principal receita é a contribuição de 1% sobre a receita operacional bruta de todo prestador de serviço de telecomunicações (internet, TV a cabo, radiodifusão etc.). A população paga caro por isso. Esses recursos poderiam e deveriam ser destinados à universalização do acesso – isso está no próprio nome do fundo! Existe, todavia, um porém. O FUST se aplica desde 2000 apenas aos “serviços prestados em regime público”, ou seja, telefonia fixa. Sim, porque parece que poucos se deram conta antes da pandemia que a internet era crucial para dar oportunidades iguais e que a telefonia fixa deixou de ser essencial há muito tempo.
O projeto de lei 3477/2020, assinado conjuntamente por 23 deputados federais de 8 partidos distintos, “dispõe sobre a garantia de acesso à internet, com fins educacionais, aos alunos e professores da educação básica pública.” Mais importante, ele permite a utilização do FUST para a universalização da banda larga fixa e móvel e telefonia celular. Prevê inclusive a aquisição de tablets e laptops para distribuição a alunos e professores da rede pública de ensino básico.
É certamente preocupante a falta total de menção no projeto ou em sua “justificação” (tsc.) para qualquer questão relacionada a infraestrutura de telecomunicações[3]. Fala corretamente que “a verdadeira barreira digital encontra-se no acesso à internet”, mas na sequência dá ênfase ao custo dos planos de dados e volume de dados oferecidos. Ignora, portanto, o importante gargalo da infraestrutura que assegure levar o sinal de internet ao domicílio de alunos e professores. Isso não é tarefa trivial em muitas comunidades em centros urbanos, e principalmente no meio rural – mesmo dispondo dos recursos do FUST. Vale dizer que o tema é amplamente debatido no Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações (PERT)[4], aprovado pela Anatel em junho de 2019, que inclusive propunha a alteração da lei do FUST para abarcar a universalização da banda larga.
Ainda assim, o projeto de lei é certamente uma iniciativa louvável, ainda que possa receber aperfeiçoamentos. Resta esperar – ou pressionar para – que vire lei antes do fim da pandemia.
[1] https://cetic.br/media/analises/tic_educacao_2019_coletiva_imprensa.pdf
[2] Dados disponíveis em: https://www.anatel.gov.br/setorregulado/arrecadacao-fust
[3] Disponível na íntegra em:
[4] https://www.anatel.gov.br/dados/pert
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Link para a matéria: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/desigualdades-na-educacao-e-o-fust-09082020