Concessões e Indenizações

Publicado no Valor Econômico em 13/07/2020
Por: Rafael Pinho de Morais

Grande parte do impacto sobre concessionárias não adveio de atos do governo, mas da precaução da própria população.

 

A atual pandemia trouxe novamente à tona discussões antigas sobre alocação de riscos nas concessões e parcerias público-privadas, em especial as que versam sobre serviços essenciais, pois nesses se exige continuidade da prestação. Em termos simples, quando o risco manifestado é considerado ordinário, cabe à concessionária suportá-lo. Os riscos próprios do negócio, como variações na demanda pelo serviço público, são em geral considerados ordinários.

Já quando se trata de algo extraordinário, para além dos riscos do negócio, o ônus fica para o poder concedente, gerando ao parceiro privado o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. A ideia é reestabelecer as condições originais do contrato (artigo 65, II, da Lei 8.666 / 93). Casos típicos incluem um raio que destruiu uma ponte ou torre de transmissão (caso fortuito), obras necessárias para fazer frente a uma necessidade súbita, como um risco novo de deslizamento ou inundação (força maior), ou ainda em virtude de decisões do poder concedente que alteram as condições iniciais do contrato. Esses últimos são chamados “fatos do príncipe”, e incluem criação ou majoração de tributo, desapropriações, outras licitações ou quaisquer outros atos de qualquer esfera de governo que onerem a prestação privada.

A pandemia trouxe questionamentos justamente sobre como enquadrá-la neste arcabouço, assim como às medidas dos entes públicos no esforço para contê-la, como decretos de isolamento social, quarentenas e lockdowns. Na prática, significa saber quem vai pagar a conta dos prejuízos incorridos por aeroportos, rodovias, transportes públicos (ônibus, trens, metrôs), geradoras, transmissoras e distribuidoras de energia, entre tantas outras empresas que proveem serviços públicos.

O Parecer 261, de 09/04/2020, assinado conjuntamente pela Advocacia-Geral da União (AGU) e Controladoria-Geral da União (CGU), pareceu pacificar a questão, ao caracterizar a pandemia como álea extraordinária, responsabilizando, assim, o poder concedente por seus efeitos (salvo disposição expressa em contrário no contrato). Foi ainda enfático com a caracterização de fatos do príncipe. Ainda que a princípio não vinculante para a administração pública e restrito a infraestruturas de transportes, a tendência até agora parece ser aplicar o Parecer 261 amplamente.

A permanecer esse entendimento, a crise econômica já aprofundada pela pandemia será mais intensa e mais longa. Além das consequências nefastas, juridicamente não se sustenta. Primeiramente, toda a discussão jurídica está em torno de alocação de riscos, quando na verdade se trata de incerteza. Risco é previsível e costuma ser passível de seguro, incerteza não. Terremotos, tsunamis e pandemias são claramente incerteza, enquanto guerra e decisões discricionárias do poder público são riscos.

Mais importante, o instrumento do reequilíbrio visa distribuir à sociedade o ônus sobre um contrato específico, haja vista a essencialidade do serviço público prestado e sua inerente exigência de continuidade. Sim, porque não existe “dinheiro público”, o erário somos nós contribuintes. Mas nessa pandemia, todos estamos sendo afetados, e não somente uma ou outra concessionária. E grandes empresas como essas certamente estão sendo menos afetadas que as pequenas, e estas menos que a maioria das pessoas físicas. E o poder concedente (de qualquer esfera mas inclusive a parte contratante) viu despencar a arrecadação e explodirem os gastos públicos (com saúde e assistência social) por conta da incerteza pandemia.

Ademais, parece imponderável caracterizar como fato do príncipe medidas para salvar vidas, seguindo recomendação da OMS e com respaldo de comitês técnico-científicos locais. Além de não haver discricionariedade alguma, vale pontuar que nenhum político gostaria de tê-las tomado, dois fatores que as distinguem de fatos do príncipe que geram direito ao reequilíbrio.

Isso sem falar que grande parte do impacto sobre concessionárias não adveio de atos do governo, mas da precaução da própria população. Com ou sem decretos, tem um vírus mortal lá fora. Essa queda de demanda, oriunda de mudança de comportamento, é risco ordinário. Além disso, as demandas da grande maioria de bens e serviços retraíram, não somente a dos serviços públicos. Os decretos não fecharam rodovias nem aeroportos, por exemplo, ao contrário de salões de beleza e comércio não essencial. E esses últimos não serão indenizados.

Por fim, num país onde até assassino confesso flagrado claramente por câmeras tem advogado para dizer que “não foi bem assim”, é no mínimo surreal ver a AGU defendendo enfaticamente os interesses do parceiro privado, e sendo acompanhada pela CGU. Tudo isso num Parecer assinado por um único advogado da União e totalmente contrário aos interesses nacionais. Medidas jurídicas que uniformizem o entendimento em sentido contrário ao do Parecer 261 são urgentes.

 

RAFAEL PINHO DE MORAIS é Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ. PhD pela Toulouse School of Economics. Mestre em Economia pela Toulouse School of Economics e pela EPGE-FGV. Bacharel em Direito pela UERJ. www.rafaelpinhodemorais.com.br

 

Link para a matéria: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/07/13/concessoes-e-indenizacoes.ghtml

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